Assistindo ao “Abecê”, curta-metragem dirigido e roteirizado por Cleo Rosa, fui tomado pela frase – “estamos juntas e chegamos até aqui, na encruzilhada de possibilidades!” A partir das histórias de Bruna, Auxiliadora e Clara, o filme trabalha com contrastes e linguagens corporais em muitos momentos, trazendo à tona o universo das mulheres negras e suas conexões em relação aos diversos espaços sociais e emocionais que elas ocupam. Eu conheço diversas delas e tenho certeza de que você também. Todas, em alguma medida, fazem parte dos nossos arranjos familiares e afetivos. A chave ancestral é muito forte. Nossas avós, tias, mães e irmãs estão nesse filme, de alguma forma. Essa perspectiva Sankofa é uma marca no Cinema Negro brasileiro do tempo presente. Ela provoca um deslocamento para fora da experiência somente do hoje, e nos coloca em reflexão com todas as dimensões temporais que habitam nossas negras existências. Eu sou porque nós somos!
A história de Auxiliadora marca o sotaque da mulher negra do Sul do Brasil, especificamente de Santa Catarina. Ela traz a percepção da cor dos sotaques, lembrando que o Brasil como um todo é negro e que existe uma realidade e um imaginário racista a ser questionado e enfrentado. Bruna está no dilema com os contrastes, um colorismo perverso eclipsado em copo de café com leite. Já Clara é o corpo feminino que corre, é o corpo da mulher negra caída na encruzilhada das adversidades. Entretanto, esse não é o seu fim, e você vai descobrir assistindo ao “Abecê”.
Cleo Rosa tem formação superior em cinema e sua pesquisa se dedica a perscrutar as tangências entre as artes visuais e o cinema. A diretora traz essa expressão estética de forma sutil em “Abecê”. Desde 2014 ela transita por diversos lugares no campo do audiovisual como produtora de objetos, assistente de arte, assistente de figurino, diretora de arte, entre outras possibilidades. Importante destacar, que ela faz parte de forma ativa do Olho Negro, primeiro coletivo negro de audiovisual em Santa Catarina. Um coletivo de fundamental importância para fomentar a produção do audiovisual negro, por meio de discussões, formações e ações, entre as quais, tive a oportunidade trabalhar em parceria, na curadoria da Mostra Audiovisual Olho Negro (Florianópolis 2022).
Foi contemplado com o Prêmio de Cinema Catarinense, de 2019, fomentado pela Fundação Catarinense de Cultura. O filme estreou, em 2023, no 17º Festival Internacional de Cinema de Gibara, em Cuba, no qual recebeu o prêmio de Melhor Curta de Ficção pelo júri de imprensa cinematográfica de Cuba. A obra segue por uma carreira internacional. Chega a Berlim na segunda edição da MUV Cinema, Áwúre e Spree, evento que faz parte do Draussen Stadt, programa de apoio à cultura do Ministério da Cultura da Alemanha.
“Abecê” certamente é um filme que ganhará outros espaços, pois guarda em si a capacidade da provocação rememorativa. História é memória. A obra é mais que um filme experimental. É um espaço de experiências onde os femininos negros ocupam o centro das narrativas.
*Adriano Denovac – Crítico de cinema da Borboletas Filmes,
historiador e doutorando em História do Tempo Presente (UDESC),
com pesquisa voltada para o cinema negro.