Uma câmera que espia o cotidiano, que olha para como se organiza uma família preta pobre e periférica no empoderamento do agora! É a história de Hellena, Lucas e seu filho Dom. Ela e ele estão às voltas com a experiência de ter um filho sem planejar. E agora, planejar o aniversário de dois anos dele, construindo a narrativa sobre si mesma, essa família que é particular, mostra-se ao mesmo tempo coletiva. E a câmera de Davidson, não é desavisada e nem despercebida. Ela quer revelar algo. O que ela quer te mostrar está na perspectiva do desenrolar diário dessas existências.
O olho, através da câmera indiscreta, é do diretor Davidson D. Candanda, que também assina roteiro, produção executiva, fotografia e montagem, o que de certa forma faz dele também uma personagem. Aquela que nos empresta o seu olhar, compartilhando com o espectador a sua perspectiva dessa experiência, traduzida em um longa-metragem. Produzido sem patrocínios ou recursos de incentivos ao audiovisual, é o que podemos chamar de cinema de guerrilha, com um excelente resultado. Esse longa retrata a batalha para contar histórias, que também são batalhas.
Lucas, após a realização do longa, fez parte do Big Brother Brasil, em 2024, reality show apresentado pela TV Globo. É interessante que, de certa maneira, o jovem pai já se preparava para a câmera persecutória desde “Crônicas de Uma Jovem Família Preta”. Mas o Lucas e a Hellena que vemos no longa-metragem ainda estão longe dessa experiência global. Estão envolvidos na narrativa de serem eles mesmos, pontilhada por memórias, esperanças, importantes referências negras, que você vai se deparar em algum momento durante a história. É ponto de convergência temporal. A encruzilhada onde ancestralidade, luta e afeto se encontram. Tudo ao mesmo tempo, aqui e agora.
“Crônicas de Uma Jovem Família Preta” já tem uma caminhada de sucesso. Desde 2023, passou por diversos festivais importantes. Entre eles, destaco o 16° Encontro de Cinema Negro
Zózimo Bulbul – Brasil, África, Caribe… (RJ) – 2023; o 56o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (DF) – 2023, e o 63° Festival Internacional de Cine de Cartagena de Indias (Colômbia) – 2024. Recebeu as premiações de Melhor Filme no 17° Festival Visões Periféricas (RJ) – 2024 e de Melhor Filme Júri Popular desse mesmo festival, mostrando a força e potência do cinema negro independente brasileiro, que mesmo com uma escassez de recursos materiais, entrega excelentes obras. Davidson e suas parcerias fazem isso.
O filme, sem dúvida, cativa quem o assiste por tratar de vidas que se deixam narrar e dialogam com quem as narra. Pela presença e o sorriso verdadeiro de Dom, que pode ser a representação de um amanhã melhor. É muito interessante a forma como o diretor lida com isso, notadamente hoje em dia, onde a exposição cotidiana e corriqueira diante das câmeras é tão comum. Quando, segundo alguns, esse tipo de linguagem parece não ter mais nada a oferecer e antes de Lucas virar um “brother”, o olho negro de Davidson já havia proposto a redenção.
O filme culmina com a festa de aniversário de dois anos de Dominic, no sítio onde Hellena sonhou em fazer a festa. Não se preocupe, isso não é um spoiler. As coisas não terminam assim. Há mais surpresas até o final da história e o começo do novo passo para essa jovem família preta.
*Adriano Denovac – Crítico de cinema da Borboletas Filmes, doutor em História doTempo Presente (UDESC), com pesquisa voltada para o Cinema Negro.