O filme “Caminhos Afrodiaspóricos pelo Recôncavo da Guanabara”, de Wagner Novais, é uma obra que traz a perspectiva de narrar fora da estrutura tripartite do tempo. Convoca o público a perceber as narrativas e suas dimensões, também como definidoras da existência humana, com base em um caráter biofílico, nessa viagem atemporal, você vai descobrir o que o coração da pomba, a pele do crocodilo e o estômago de avestruz têm a ver com as dimensões do existir afrodiaspórico, o que faz deste filme uma obra totalmente fora da curva e que propõe um deslocamento de base ontológica a quem o assiste em seus aproximadamente 20 minutos.
As narrativas convencionais, na literatura ou no cinema, estão quase sempre situadas no passado, no presente, ou no futuro e dentro de uma “ordem” dita “cronológica”. A partir de Sankofa, como perspectiva de retorno ao passado, o filme nos provoca a ressignificar estas instâncias artificiais do tempo e do viver, notadamente implicando em uma ressignificação do real como convocação política. Todo esse movimento acontece através da personagem Carmen, uma viajante do tempo, que vai ao longo da obra documental recolhendo informações dadas pela ancestralidade na busca da compreensão e da construção de um devir negro.
Wagner traz vozes do saber ancestral, no presente da narrativa fílmica, sem perder a dimensão de que “ancestralidade” é o cheiro da terra na sola dos pés dos pequenos. É o som do sal que mora nas correntezas do teu peito, antes mesmo de te conhecer, o toque suave do suspiro, derretendo na língua, são os seus dedos se aventurando a embaraçar seus nervos povoados de fios crespos”. Essa chave ancestral está expressa também nas falas e nas presenças dos corpos negros de Mãe Celina de Xangô, Renato Noguera, Helena Theodoro, Dandara Suburbana e Mônica Lima, e na possibilidade de você conhecer e reconhecer Mercedes Batista, Dom Obá e Machado de Assis. Tais pessoas estão lá como vozes que dão o caráter da experiência e do científico ao documentário, mas também no entendimento de que esse “científico” é para além da compreensão da branquitude ocidental, e é sobre o que significa falar de um lugar de sabedoria ancestral.
O documentário, na leitura dessa crítica, está consubstanciado em uma das características do cinema negro brasileiro no tempo presente, qual seja, dialogar diretamente com formas e estéticas negras de compreensão. Formas outras, como já enunciado aqui, fora da curva da branquitude hegemônica e que, entre outros aspectos, pode ser apreendido por nós, pessoas negras, nos elementos estéticos afrodiaspóricos que estão dispostos de maneira magistral por toda a obra, desde o recurso na construção das cenas ficcionais, até as vestimentas das pessoas entrevistadas. Toda essa profusão visual e de ressignificados é resultado de uma excelente equipe técnica e de produção, com destaque para o roteiro, direção de arte e figurino que são, respectivamente, de Wagner Novais, Andressa Núbia Thamyra Thamara e Jésus Baro.
Wagner Novais já assinou diversos trabalhos importantes. Tem como marco inicial de sua carreira o ano de 2005, como promotor no projeto Cinema para Todos, do Governo do Estado do Rio de Janeiro e, desde lá desenvolveu trabalhos como roteirista, diretor e professor de cinema, com destaque para a direção de “Fonte de Renda”, um dos episódios do longa “Cinco Vezes Favela – Agora por nós mesmos”, (2010). O curta-metragem “Caminhos Afrodiaspóricos pelo Recôncavo da Guanabara” estreou no Festival do Rio – Rio de Janeiro Int’l Film Festival (RJ), em 2022. E você terá oportunidade de assistir ao filme durante a programação do 30º Festival de Cinema de Vitória (ES), entre os dias 18 e 23 de setembro, e também no 16º Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul – Brasil, África, Caribe (RJ), de 17 a 24 de outubro.
Poderia ainda dizer tantas outras coisas sobre essa obra pois ela, sem dúvidas, toca os corpos e as almas, sobretudo as negras, em diversas instâncias. Contudo você precisa ter sua própria experiência diante desse documentário. Por término, digo que essa obra é um afro fractal atemporal e pode nos deslocar com o desejo de que reconheçamos o “côncavo e relutante movimento de abraçar a si mesmo”.
*Adriano Denovac – Crítico de cinema da Borboletas Filmes,
historiador e doutorando em História do Tempo Presente (UDESC),
com pesquisa voltada para o cinema negro.