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Deixa (2023)

   

         “Deixa” é um filme sobre liberdade às avessas. Sobre os últimos instantes de uma prisão e o impacto disso na vida de uma mulher: Carmen. Ela toma uma decisão insólita que nos faz pensar em liberdade e prisão. Liberdade por desejo e prisão por condição? Ou nenhuma delas? É um filme sobre escolhas, sobremaneira, aquelas que parecem não ter razão. Mas só essa mulher negra, do lugar de sua experiência, sabe por quais motivos toma suas decisões. Nesse movimento fílmico do renunciar a coisas preciosas, a história de Carmen, de seus afetos e desafetos é atravessada pela canção de Luedji Luna que diz: “Eu vou andando pelo mundo como posso, e me refaço em cada passo dado. Eu faço o que devo e, acho, não me encaixo em nada.”

 

         Carmen é interpretada pela diva do cinema brasileiro Zezé Motta que dá vida de forma indefectível aos dramas da personagem. As coisas não ditas nas palavras estão em seu olhar, em seu corpo, que fala explicitamente no filme. Zezé foi, é e sempre será um espetáculo para os olhos e todos os sentidos. Uma mulher fantástica que sobreviveu à violência do racismo e nos dá profundos ensinamentos a cada aparição. Ela é a história viva do Cinema brasileiro.

 

         O filme é dirigido pela soteropolitana Mariana Jaspe, um dos nomes mais criativos e competentes do audiovisual contemporâneo brasileiro. Mulher negra e absolutamente antenada com as questões de nosso tempo, a jovem diretora do filme “Deixa” tem uma trajetória importante. Graduada em Rádio e TV pela UFPE, especialista em Cinema, Televisão e Mídias Interativas pela Universidad Rey Juan Carlos, de Madrid, e Direção de Cinema pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro. Fez sua estreia no cinema com o curta-metragem “Carne” (2018) , selecionado para mais de 30 festivais ao redor do mundo. 

 

         “Deixa” conta com essas duas mulheres poderosas, de tempos diferentes, mas sintonizadas no presente, não só pela narrativa do filme, mas também pela história do Cinema Negro no país e pela representatividade e o que cada uma delas tem a nos dar como contribuição. O curta-metragem estreou no 51º Festival de Cinema de Gramado de 2023, no qual recebeu o Kikito de Melhor Direção.

 

         De volta às provocações iniciais: o quão livres somos em nossas vidas? O que está por trás de nossas grades simbólicas?  Por vezes, temos de ser um pouco Carmen em nossas escolhas?  Por que dói tanto? Quem vem lá?  Assistir ao filme “Deixa”, se nos permitirmos, é uma possibilidade para confrontarmos algumas questões como essas. Essa crítica não tem, evidentemente,  a pretensão de trazer essas respostas. Suspeito que o filme dirigido por Mariana Jaspe também não. Mas acredito que ela quer nos instigar a pensar de forma mais ampla sobre questões ligadas ao feminino negro e, de forma mais particular, a experiência e o desejo de liberdade, sobremaneira em nossos corpos negros. Sobre nossos afetos, desejos e renúncias.

*Adriano Denovac – Crítico de cinema da Borboletas Filmes,

historiador e doutorando em História do Tempo Presente (UDESC),

com pesquisa voltada para o cinema negro.