Você já desejou parar o tempo? Já sentiu a necessidade de recuperar emoções e pessoas de seu passado e presentificá-los? Com certeza sim, pois são desejos que confirmam a nossa humanidade e capacidade de reinventar o presente. É quando estamos “A um Gole da Eternidade”. Este, um curta-metragem etílico sobre tempo, afetos, saudade e decisões fatídicas.
Dirigido por pai e filha, Paulo Ricardo de Moraes e Camila de Moraes (O Caso do Homem Errado, 2017; Mãe Solo, 2021), o filme é também dedicado ao ator gaúcho Sirmar Antunes, falecido em 2022, e que deixou um legado importantíssimo para o cinema preto gaúcho e brasileiro. O ator daria vida ao personagem Feitio de Dança, interpretado pelo também multiartista Álvaro RosaCosta.
A trama se passa quase toda no botequim do português, o típico boteco, onde os amigos e amigas se encontram para celebrar a amizade, falar da vida, suas alegrias, amores e dissabores e certamente tomar um talagaço. E é nesse cenário cheio de referências e personagens emblemáticos, como o Cirrose e a enigmática mulher que bebe sozinha, que Feitio de Dança decide, com a ajuda de sua filha e um amigo, por em prática um plano para parar o tempo e eternizar estes momentos. Sim, mais um gole.
Esse é um filme de afetos negros e famílias, dentro e fora da tela. Sirmar é – pois afetos nunca deixam de ser – amigo do diretor Paulo Ricardo, que também assina o roteiro, e da atriz Vera Lopes, que interpreta a mulher enigmática no bar do português e é mãe da diretora Camila de Moraes, importante referência do cinema brasileiro no tempo presente. Em 2023, o Festival de Cinema de Gramado, em parceria com a Assembleia Legislativa do RS, criou o Prêmio Sirmar Antunes, que presta homenagem a artistas gaúchas e gaúchos pelo conjunto e relevância de seus trabalhos. Vera Lopes recebeu o prêmio em 2023 e, este ano, o prêmio será concedido a RosaCosta, que interpreta Feitio de Dança, no curta “A Um Gole da Eternidade”, de maneira que esse personagem pertence aos dois grande artistas.
Todas essas negras conexões transbordam para o além filme, na eterna dança dos afetos e da ancestralidade. Estas nos conectam com a história e fazem do particular o universal, ou vice versa. Ou, ainda, qualquer possibilidade outra, até mesmo a desejada por Feitio da Dança e comparsas. Entretanto, com o transbordo dos desejos vem o descontrole. E a história no boteco do português ruma para um desfecho que você só saberá se tomar o primeiro gole.
Paulo Ricardo, além de cineasta, é jornalista e poeta. Em 2024 ele também concluiu o curta “Chic e Chóc”, após “A Um Gole da Eternidade”, um projeto de mais de 30 anos, que finalmente ganha as telas com a indicação para a Mostra Curtas Gaúchos, no 52° Festival de Cinema de Gramado, que acontece neste mês de agosto.
O filme tem várias referências. Você vai encontrar as suas. Entretanto, destaco uma que é também uma homenagem. A foto do jogador de futebol na parede, atrás do balcão do português, é de Breno Mello, que além do futebol destacou-se como ator e protagonista no filme Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus. Representando a França, o filme ítalo-franco-brasileiro ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960. Breno Mello é outra figura negra pioneira e importante no cenário da cultura nacional, em um momento em que a presença de negros em papel de destaque no cinema era muito menor que no tempo presente, quando ainda lutamos por espaços de trabalho e representatividade. Era um cenário muito mais árduo de violência racial, ainda que hoje em dia o racismo persista. E, por isso, reverenciamos quem veio antes de nós. Somos frutos dessas lutas, resistências, afetos, vitórias.
Sem dúvida, vale a pena assistir “A Um Gole da Eternidade” e ir em direção ao seu desfecho. Lembrando que a beleza quase sempre está no caminho e não necessariamente no ponto de chegada. Talvez a chegada nem exista. Então, tomemos o último gole. Mas isso ele não será, já que esse gole é para a eternidade.
*Adriano Denovac – Crítico de cinema da Borboletas Filmes, doutor em História doTempo Presente (UDESC), com pesquisa voltada para o Cinema Negro.