Na praia onírica de Anu estão história, memória, apagamento e o fabuloso encontro das culturas indígenas e africanas. Diante do mar, o fluido elo ancestral ao sabor do vento, ela folheia livros repletos de imagens que comunicam a história do Brasil, que inventam memórias, que contam eventos escritos sob um único olhar, como se verdades elas fossem e de forma sutil, ela propõe uma reinterpretação semântica, um giro na perspectiva da história do Brasil. É o encontro de nossas matrizes ancestrais. E então ela nos pergunta: – que história as imagens têm contado pra gente?
“O Sonho de Anu” (2024) é um curta-metragem que transita entre imagens oníricas e encontros culturais, celebrando o abraço entre as culturas indígena e negra. É aquele tipo de abraço em que você sente o coração da outra pessoa pulsando junto ao seu, sabe? O filme explora a jornada de Anu, uma jovem de origem africana, que busca reconectar-se com as raízes ancestrais do Brasil, no território paraibano. Revelando a marca dos invasores à medida que a história avança, traz uma experiência cinematográfica contemplativa e poética sem, no entanto, deixar de fazer a denúncia e a propor mudanças. Como na cena do giro semântico nos livros de história, em que ela substitui palavras e revela verdades, em uma das cenas mais interessantes do filme.
Com uma fotografia que captura a beleza natural das paisagens paraibanas e uma dimensão poética, a diretora Vanessa Kypá faz a conexão estético-visual para a imersão do público na jornada espiritual de Anu. O curta foi gravado na Paraíba, nas localidades da Aldeia Alto do Tambá, Baía da Traição-TI Potiguara, João Pessoa e Sítio Bálsamo, zona rural do Vale do Piancó, e oferece um espetáculo visual, com uma narrativa lenta, sem ser enfadonha. Respeita os tempos ancestrais, as memórias e nos conduz a sonhar acordado, que é também lugar de consciência.
Vanessa é natural da Caatinga, do Vale do Piancó, na Paraíba, graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal daquele Estado (UFPB). Seu trabalho explora memória, identidade e ancestralidade dos povos sertanejos, indígenas e afro-brasileiros. Ela também dirigiu os curtas “Doce de Gergelim” (2023) e “Capoeira na Roda e na Vida” (2024). Também é idealizadora do 1º CineJuá, cineclube itinerante. Descendente do Tapuia-Tarairiú, Vanessa Kypá tem na insígnia de seu corpo o encontro das matrizes ancestrais que formam a nossa cultura. Isso está expresso em cada segundo do curta-metragem. “O Sonho de Anu” participou do 19o Fest Aruanda (2024), na Mostra Competitiva de Curtas Paraibanos – Sob o Céu Nordestino.
Você vai se emocionar com a história contada e desvelada nesse filme. É um alerta para o perigo de uma História única, da ideia de memória como verdade e de como a narrativa história oficial, aquela que está nos livros escolares, contribuiu para a subalternização dos povos indígenas e das populações afro-descentes brasileiras, pois é um “eles falando sobre nós”.
Entretanto, “O Sonho de Anu” também é sonho de que possamos narrar as nossas próprias histórias e reelaborar o nosso passado formador, em um presente liberto do jugo dos invasores. É sonhar acordada! Vanessa Kypá e sua equipe entregam uma peça de arte que é tanto um tributo quanto um chamado à ação para a preservação das culturas indígenas e afro-brasileiras.
*Adriano Denovac – Crítico de cinema da Borboletas Filmes, doutor em História doTempo Presente (UDESC), com pesquisa voltada para o Cinema Negro.