Vamos descobrir, conhecer, reconhecer Malunga, que é Thereza Santos, pouco conhecida na história do Brasil. Educadora, intelectual, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), negra e ativista cultural, de fundamental importância, não só para a luta do movimento negro e contra a ditadura militar no país, como também em Angola e Guiné Bissau, onde participou intensamente dos movimentos de libertação desses países. Você vai se surpreender. Thereza é força e ancestralidade ativa. E vamos conhecê-la também a partir de sua própria narrativa, pois o filme usa fragmentos de uma entrevista concedida ao Museu do Samba na Mangueira – RJ, em maio de 2012, sete meses antes de partir dessa existência. Ver, sentir e ouvir Malunga nos toca em lugares profundos, como o “corredor oceânico” que liga o Brasil ao continente africano.
“Eles só prendiam brancos, eles não conheciam negro na luta, e aí, quando deram de cara comigo, eu acho que ficou uma pergunta nas suas cabeças: – O que essa negra está fazendo entre esses brancos?” Assim, esta carioca de nascimento, começa a nos contar a sua incrível trajetória, pois os militares não imaginavam que uma mulher negra teria conhecimento profundo sobre comunismo e achavam, por conta do racismo, que ela era só um “boi mandado”, como ela mesma nos conta. A partir daí, a história fica cada vez mais interessante e revela Thereza e a sua história. Com base no uso de documentos oficias da censura, de documentação em Angola e Guiné Bissau, bem como diversos depoimentos, a diretora Gal Souza constrói um documentário que se preocupa mais em narrar a história da personagem antes e depois do exílio, a partir das falas e documentos e sobremaneira do ponto de vista de Malunga.
Thereza era teatróloga. Entre outros trabalhos escreveu e encenou a peça “E agora falamos nós”, com o sociólogo Eduardo de Oliveira. Uma das primeiras peças teatrais para um grupo exclusivamente formado por negras e negros. E em uma passagem do filme você vai entender como a censura da ditadura militar agiu nesse caso. A riqueza da documentação é um dos pontos de destaque no filme, pois revela a perspectiva do regime ditatorial. Em outra dimensão, o filme conta a experiência da personagem no exílio até a expulsão de Angola. Algo incrível, você vai ver!
Malunga significa irmã ou companheira, em alguns idiomas africanos, e revela a profunda relação de Thereza Santos com as Áfricas, especialmente Guiné Bissau e Angola. Lá construiu laços, vínculos e obteve reconhecimento pelo seu trabalho, militância e ideais, despertando os seus inimigos políticos, o que a trouxe descalça, de volta para o Brasil.
A diretora Gal Souza, que também é produtora do documentário, e sua equipe, constroem mais um grande e revelador documentário do novo Cinema Negro Brasileiro. Malunga é uma narrativa de sensibilidade e profundidade que revela traços da resistência e da resiliência de Thereza Santos. Gal é educadora, ponto de convergência com Malunga. Também é formada em História e mestranda em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É o filme de uma historiadora contando a história de outra mulher negra, e esse encontro produz mais história que nos inspira e reforça que a ancestralidade vive em cada ato de resistência.
Produzido em 2023, em parceria com a Casa Sueli Carneiro, o filme já andou por diversos festivais, entre eles o 16º Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul (RJ) – 2023; da V Mostra Itinerante de Cinemas Negros Mahomed Bamba (NIMB) (BA) – 2024 e também o 35º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo (SP) – 2024. Malunga extrapola a realidade fílmica. É um manifesto à ancestralidade, à diáspora negra. Somos convocados a atravessar essa sinuosa história com Thereza Santos. Uma travessia de coragem, força, luta política, afeto ancestral, mas indefectivelmente, de uma mulher negra brasileira que se recusou a ser silenciada. Salve, Malunga!
*Adriano Denovac – Crítico de cinema da Borboletas Filmes, doutor em História doTempo Presente (UDESC), com pesquisa voltada para o Cinema Negro.