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A Serena Onda que o Mar me Trouxe (2023)

            Você está ouvindo? O som suave do mar?  É “A Serena Onda que o Mar me Trouxe” (2023). Um filme feito do coração, de reminiscências e descobertas. O longa-metragem do diretor capixaba Edson Ferreira conta a história de seu pai, Edson Ferreira da Silva, o arco dramático de uma vida inteira na tela. O filme é a sensibilidade do olhar do cineasta Edson para o pai, que ao trazê-lo para o cinema provoca uma redescoberta, lançando novos olhares para o passado e o presente familiar, provocando sensações, nessas mesmas dimensões, em quem o assiste. É o encontro do pai como treinador do Esporte Clube Esplanada, nos anos 70, que revela um homem ainda mais interessante. Nessa troca de pretos olhares, ninguém será mais o (a) mesmo (a). Nem eles, nem nós. 

 

          Edson faz uma arqueologia da história de sua família, através de fotos, cartas, entrevistas com familiares, amigos e os integrantes do time de futebol. Ele parte de fotografias, o olhar particular do pai nessas imagens, e vai conduzindo o espectador de forma absolutamente envolvente, com uma história que em princípio pode parecer comum, sem grande possibilidade para um filme. Entretanto, o diretor realiza exatamente o contrário. Ele conta que, no início, a proposta era um curta-metragem com a intenção de trazer força e alegria, através de boas lembranças, para o pai que estava doente e deprimido. No entanto, o que acontece é que ele se vê e também passa a perceber pela ótica do pai, redimensionando esse afeto preto, que o cineasta transforma em extraordinária narrativa.

 

            “A Serena Onda que o Mar me Trouxe” apresenta uma família negra de classe média, com uma condição que não corresponde às narrativas e estereótipos construídos no cinema acerca das famílias pretas. Segundo o diretor, o pai era marinheiro e sabia do desafio para ele, enquanto homem negro, que assumia um lugar de destaque hierárquico, em um espaço ocupado por brancos. O diretor traz para a tela um homem preto doce, sem violência, sem truculência, sem a perspectiva animalizada que se espera do homem negro, forjadas no processo de exclusão. Edson chama o pai de “artífice do afeto”. É possível perceber a construção dessa teia de sensibilidades durante o filme. A experiência de vida de Edson da Silva na tela, suscita também a discussão sobre masculinidade negra, apresentando outra perspectiva de ser, fora do estigma social. Nos faz pensar, sobre o afeto negado ao homem negro, nos convidando a olhar para as nossas próprias construções familiares, sobretudo se você é um homem negro. É uma janela para si mesmo.

 

           O cinema de afeto construído em “A Serena Onda que O Mar me Trouxe” diz também sobre o cinema preto brasileiro, que vive um momento de expansão de suas narrativas. Apesar das demandas ainda colocadas, um cinema interessado pelas histórias, mas também pelo corpos negros em ação, sem a câmera fetichista da branquitude, que aprisiona o corpo negro em modelos estereotipados. Narrativas construídas por nós e a partir de nossas existências, e o filme alcança esse lugar, esse “status” de cinema preto, que vai além de ser totalmente produzido por pessoas pretas. A esse respeito, o diretor diz que “sente que a concretude do cinema preto se estabelece no momento em que filmamos, em que a gente dá o REC. No momento em que registramos corpos pretos, as inquietações que nós temos. É um cinema com alma.”

 

             Edson tem mais de 20 anos de experiência e é um artista multitalentoso. Ator, roteirista e cineasta é o primeiro negro a dirigir um longa-metragem de ficção no estado do Espírito Santo, o filme Entreturnos (2014). É membro da Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais e fundador da Filmes da Ilha Produções. Na carreira de ator seus trabalhos de referência são o longa Areia (2024), a série Cidinha dá Jeito (2019) e o curta, A Mesa no Deserto (2017). “A  Serena Onda Que o Mar me Trouxe” é o primeiro filme do diretor distribuído comercialmente, com bilheteria, o que é muito emblématico, não só para o diretor mas para o cinema negro brasileiro, que também vem buscando espaço nas salas comerciais de cinema.

 

            O filme nos presenteia a doçura e o olhar poético do senhor Edson Ferreira da Silva. Interessante destacar que as letras do título de “A Serena Onda Que o Mar me Trouxe” são retiradas da carta escrita por ele para a esposa Dona Maria, e que tem alguns fragmentos lidos durante o filme. Isso o torna parte da estrutura do filme e o transforma em poesia, que chega como uma serena onda do oceano, que nos conecta com nossa ancestralidade africana, expressa no amor e no afeto de um filho pelo pai.

*Adriano Denovac – Crítico de cinema da Borboletas Filmes,

historiador e doutorando em História do Tempo Presente (UDESC),

com pesquisa voltada para o cinema negro.