Amapá 2022: o documentário “Essa Terra é Meu Quilombo”, da diretora amapaense Rayane Penha, escuta as memórias de três comunidades quilombolas urbanas naquele Estado: Casa Grande, Curralinho e Curiaú. O documentário ressalta a força da realização feminina no cuidado com a terra e a proteção do território. Não tem o foco absoluto na tragédia da expropriação histórica das terras quilombolas no Brasil, sem contudo omitir isso. Entretanto, a narrativa se dá a partir das memórias femininas que narram as suas experiências em distintas gerações, em uma perspectiva ampliada e libertária. Um documentário de escuta ativa, com um tom confessional que, por meio dessas mulheres, mostra a transformação dos espaços, a força e a beleza dos saberes ancestrais em movimento na formação dessas comunidades. Um filme sobre a construção de territórios e afetos.
A narrativa se inicia pela localidade que tem o nome emblemático, Casa Grande, onde ouvimos memórias da agricultora Zefa Chagas, a respeito da experiência de luta de seu pai, nos anos 60, século passado, para que as terras não fossem tomadas. Entretanto, a diretora escuta e dialoga com as vozes femininas, apontando um presente que reconhece na força das gerações anteriores, a capacidade de transformação dessas mulheres no presente, e como essas comunidades se articulam para a construção de um porvir mais digno para as gerações vindouras. A agricultora, uma das filhas da terra, é a amálgama dessas experiências. Todas elas compartilham esse fazer, que é absolutamente transformador, e revela os quilombos para além da agricultura que dá sustento, mas a terra e o território como espaços curativos e de conexão com a ancestralidade.
Nessa dança quilombola através do tempo-espaço, a diretora constrói o arco dramático de “Essa Terra é Meu Quilombo”. Uma das múltiplas vozes é a de dona Joaquina, agricultora e moradora de Curralinho. Ela é a voz mais antiga de corpo presente no documentário, todas as vozes são importantes, entretanto dona Joaquina representa o mais antigo e o saber ancestral, que compõem com as outras vozes femininas o tom de memória, como também traz a sua percepção da alteração do espaço, suas relações com o passar do tempo. Não parece acaso ser também a última voz que escutamos nessa narrativa, sobre a relação terra, território e afeto. Essa crítica não contém spoiler, mas você vai perceber isso quando chegar ao final do documentário. Corpos negres entenderão melhor!!!
A direção de fotografia de André Cantuária é um dos pontos altos do filme, revelando a exuberância natural do Amapá e dando um tom cinematográfico ao documentário. A diretora Rayane Penha, que também é jornalista, assina roteiro e produção executiva do documentário. Fundadora da produtora Catraia, Rayane tem em seu currículo, curtas, longas, animação e direção de videoclipe. Destaco aqui alguns trabalhos: como diretora e roteirista, do curta `Carta sobre o nosso lugar mulheres do Vila Nova”, produzido para o Canal Futura; diretora do clipe “Oriki”, do rapper Pretogonista. É roteirista e diretora do longa de ficção “Chamado da Floresta”, projeto vencedor do Lab Negras Narrativas 2021 e roteirista do projeto Segundo Ato, da Netflix. Rayne também é diretora presidente da Associação Gira Mundo, que tem por objetivo fomentar atividades artísticas e educacionais, possui sede na cidade de Macapá, no Estado do Amapá, na Amazônia brasileira e tem em seu histórico ações e projetos em diversos estados do Brasil.
“Essa Terra é Meu Quilombo” é uma obra premiada, com participação em festivais, como: III Festival de Cinema Negro Zélia Amador de Deus (PA), em 2022, onde recebeu o prêmio de distribuição; Cine Alter – Festival de Cinema Latino-Americano de Alter do Chão (PA); V Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio (DF). O filme também recebeu Menção Honrosa no 1o Olhar Film Festival (PA), em 2022. Por esses e por outros trabalhos, Rayne é reconhecida como um dos nomes de referência na cinematografia negra brasileira no tempo presente.
Terra é vida. A construção do território é a possibilidade de ser, estar e permanecer no mundo na perspectiva da ancestralidade, onde o afeto e consciência corpórea dessas conexões, são bandeiras de luta contra o racismo e, para além disso, a construção de um espaço onde o ser esteja livre. Axé à todas as possibilidades de “aquilombamento”.
*Adriano Denovac – Crítico de cinema da Borboletas Filmes,
historiador e doutorando em História do Tempo Presente (UDESC),
com pesquisa voltada para o cinema negro.